Espalhadas por todo o planeta, mais de um bilhão de pessoas vivem
com menos de US$ 2 por dia: seja no Brasil ou outros países da América Latina e
do Caribe, na África, na Ásia e, também, nos Estados Unidos e em alguns países
da Europa. Estão principalmente no campo, em áreas urbanas de pobreza extrema e
em regiões de conflito. Sofrem de todo tipo de carência – de água potável, de
escolaridade, de saneamento básico, de moradia e de acesso a tratamentos de
saúde – e são as principais vítimas de doenças negligenciadas.
O progresso científico dos últimos 30 anos, principalmente em
países desenvolvidos, gerou avanços médicos sem precedentes e um ganho
substancial na expectativa de vida. Um artigo publicado na revista Lancet, em 2006, apontou que,
entre 1975 e 2004, foram registrados 1.556 medicamentos. Destes, porém, apenas
21 foram registrados para doenças negligenciadas, apesar de representarem 12%
da carga global de doenças. E mais: em 2002, quando o mercado mundial de
fármacos era de US$ 400 bilhões, nos Estados Unidos 194 novos medicamentos
estavam sendo desenvolvidos pela indústria farmacêutica e de biotecnologia, dos
quais apenas uma única droga era contra doenças parasitárias e nenhuma era
vacina contra doenças tropicais.
A lista de doenças consideradas negligenciadas varia de um país
para outro. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) concentra seus
esforços em dois grandes grupos: doenças tratáveis e contra as quais existem
meios de combate (como filariose linfática, oncocercose, esquistossomose e
dengue), e doenças ainda sem tratamento e que exigem cuidados específicos (como
leishmaniose e doença de Chagas). No Brasil, o quadro de doenças negligenciadas
é inquietante, a julgar pelas informações disponíveis em artigos publicados em
periódicos qualificados da área médica. Peter Hotez, da George Washington
University Medical Center, nos EUA, aponta que grande parte dessas doenças da
América Latina e Caribe ocorre atualmente no Brasil, incluindo todos os casos
de tracoma e hanseníase, e a maioria dos casos de ascaríase, dengue,
ancilostomíase, esquistossomose e leishmaniose visceral.
Muitas pesquisas têm sido desenvolvidas. Um artigo publicado na Nature Genetics em 2002 apontava, dentre as dez
biotecnologias de maior impacto na saúde dos países em desenvolvimento, os
métodos diagnósticos de doenças infecciosas, simples e baratos, baseados em
tecnologias moleculares; as vacinas recombinantes contra doenças infecciosas;
os biofármacos recombinantes mais baratos (insulina, interferons); a
bioinformática para identificação de alvos para fármacos e estudo de interações
patógeno-hospedeiro; e o sequenciamento de genomas de patógenos com vistas à
compreensão de sua biologia e ao desenvolvimento de novos agentes
antimicrobianos.
De acordo com estudos publicados pelo Instituto George para a
Saúde Internacional, com apoio da Fundação Bill & Melinda Gates, em 2007
foram investidos US$ 2,56 bilhões em pesquisa de doenças negligenciadas. Desse
total, pesquisas sobre a Aids ficaram com 42%; malária e tuberculose, com
outros 34% e, menos de 5%, foram para pesquisas em doença do sono, leishmaniose
visceral e doença de Chagas, que afetam juntas mais de 500 milhões de pessoas.
Segundo Michel Lotrowska, diretor do escritório regional no Rio de
Janeiro da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla
em inglês), "em 2003, a África consumia apenas 1% dos remédios produzidos
na época". Lotrowska conta que a DNDi surgiu justamente ante às constatações
da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), que faltavam medicamentos em
regiões empobrecidas. E acrescenta: "para doenças que também atingiam
países ricos, os remédios eram muito caros; para doenças que só atingiam países
pobres, os remédios eram muito velhos, sem inovação, e por vezes com muitos
efeitos colaterais". A DNDi trabalha no desenvolvimento de produtos sem
fins lucrativos, pesquisa e desenvolve novos tratamentos para as doenças mais
negligenciadas e tem como parceiros fundadores o Instituto Pasteur, na França,
a Fiocruz, no Brasil, o Ministério da Saúde da Malásia e os institutos de
pesquisa clínica da Índia e do Quênia. Seu principal objetivo é fornecer, até
2014, de seis a oito novos tratamentos que atendam às necessidades desses pacientes.
Para Lotrowska, a situação é consequência "tanto de políticas
públicas insuficientes voltadas para P&D de medicamentos de interesse
nacional dos países em desenvolvimento, quanto da falta de mercado, provocada
pelo baixo interesse econômico que esses pacientes representam para a
indústria". Com baixo poder aquisitivo e sem influência política, os
doentes e sistemas de saúde de países pobres não conseguem gerar o retorno
financeiro exigido pela maior parte das empresas.
ALGUNS AVANÇOS Desde 2006, a OMS e suas
mais de 25 organizações parceiras adotam a quimioterapia preventiva como
estratégia de combate à oncocercose, à filariose linfática, à esquistossomose e
às geohelmintíases. Para combatê-las, populações afetadas recebem medicamentos
a preços muito reduzidos ou doados por fabricantes.
Se compararmos o quadro atual com o de 1985, há margem para
otimismo. Naquele ano a OMS estimava que, em todo o mundo, cerca de 360 milhões
de pessoas sofriam de tracoma e 5,2 milhões de hanseníase. Atualmente, ainda
são muitos os afetados por tracoma – 80 milhões de pessoas – mas a queda foi de
mais de 75%. A hanseníase afeta pouco menos de 213 mil pessoas e, nesse
período, mais de 14,5 milhões de pessoas foram curadas.
Em dez países da África do oeste, a oncocercose não é mais um
problema de saúde pública, nem é considerada uma doença importante do ponto de
vista socioeconômico. Outro resultado promissor é com a dracunculose que, em
1985, atingia cerca de 3,5 milhões de pessoas em 20 países. Hoje, são identificados
menos de 5 mil casos em seis países, dos quais 98% estão concentrados em Gana e
no Sudão.
Desde 2000, o tratamento contra filariose linfática foi
intensificado. Em 2007, 546 milhões de pessoas, de 48 dos 81 países endêmicos,
foram submetidas a um tratamento preventivo dessa doença: em agosto de 2007, a
China foi o primeiro país a eliminar a filariose linfática enquanto problema de
saúde pública, seguido pela República da Coreia, em março de 2008.
BOA VONTADE Ainda timidamente, a
indústria farmacêutica tem assumido compromissos. Pfizer, Merck,
Sanofi-Aventis, Bayer, Eisai e outras têm feito parcerias em P&D de novas
drogas e na distribuição de medicamentos a populações afetadas. Nos últimos
dois anos foram lançados, entre outros, dois medicamentos antimalária e um novo
tratamento para estágios avançados de doença do sono. Quase 40 anos após o
lançamento dos dois únicos remédios disponíveis para doença de Chagas, foi
anunciado, em 2009, um acordo entre a DNDi e a Eisai para teste de um novo
medicamento contra a doença.
Recentemente, a Pfizer Inc. abriu sua biblioteca de cerca de 200
mil compostos à DNDi e parceiros para testes contra a doença do sono, a
leishmaniose visceral e a doença de Chagas. Acordo semelhante também foi
firmado com a Medecines for Malaria Ventures (MMV) para testes contra o Plasmodium falciparum, que causa a malária aguda.
BRASIL TENTA FAZER SUA PARTE A situação melhorou desde 2003, embora ainda longe da ideal. Para
o representante da DNDi, o Brasil se destaca no cenário internacional: "é
o sexto no mundo em investimentos em pesquisa de doenças negligenciadas e o
primeiro dentre os países em desenvolvimento". Em 2008, os países e blocos
que mais investiram em pesquisas de doenças negligenciadas são os EUA, com US$
1,2 bilhão(70%) seguidos pela União Europeia como um todo, e Inglaterra,
Holanda, Irlanda, respectivamente. O Brasil, em sexto lugar, investiu US$ 21,9
milhões (1,24%).
Além de investir em pesquisa, é preciso passar o conhecimento científico
para a inovação na indústria. E desenvolver novos produtos requer mecanismos
inovadores de financiamento e redução de custos. Michel Lotrowska acrescenta
que para doenças negligenciadas o sistema de patentes de novos medicamentos não
funciona: "o sistema precisa ter sustentabilidade; não basta descobrir uma
nova droga; é preciso testá-la, distribuí-la, treinar médicos e tratar
pacientes. Isso tem um custo elevado". Sem parcerias entre governos,
instituições não governamentais e empresas privadas e sem estímulos e
compensações, doenças continuarão negligenciadas e milhões de pessoas
permanecerão doentes e esquecidas.
Leonor Assad